Monday, September 05, 2011

Prove me I'm wrong

“Sinto que sou uma personagem de um conto em que não me consigo reconhecer”, disseste. O sentimento é grande demais. A partilha é grande demais. A distância é grande demais.

Sentir é avassalador, não gosto. Gostar é intenso, não gosto. Esforçar…para quê? Amar é ser-se uma ingénua personagem de ficção que perde a noção do ridículo e eu não me presto mais a esse papel. Não foi assim?

Mas no tempo em que ainda te sabias dentro dos olhos desse personagem, brilhavas ao vislumbrar a minha sombra ao fundo da rua…os teus olhos cintilavam, um sorriso rasgado, os braços abertos, apertar-me para nunca me deixar partir. Estava nos teus pensamentos, nos teus sonhos, nos teus devaneios, nos teus sentimentos; a nossa telepatia enorme, capaz de ultrapassar as barreiras que kms de distância criam. Disseste-o, lembras-te? O amor verdadeiro não se cria, encontra-se, “é incrível como isso está a acontecer”, disseste, lembras-te?

Hoje a distância que nos separa não são países e oceanos que a formam. São fios de comunicação perdidos, são as tuas mãos que já não apertam as minhas, são os postais e fotos que descolaste da parede, são as cartas que já não salpicas de desenhos, são as palavras que já não se formam em emoções dentro de ti. É vazio, é indiferença, é ausência, frieza, e a faca com que me esquartejaste réstias (tão ténues) de alegria.

Hoje, sem ti, já nem sei escrever. Faltam-me as palavras que fervilham a força que me move. Falta-me a esperança de que um dia tudo melhore, que um dia eu seja mais que um conjunto de negras dúvidas que insistem em arrastar-se por aí.

Tu que eras tão diferente, tão especial, tão igual a mim, partiste como todos os outros, deixaste em mim o mesmo vazio que todos os outros, distorceste o que fomos, como todos os outros, e esqueceste-te de mim, como todos os outros.

Pode ser que te arrependas, como todos os outros. Pode ser que, ao contrário de todos os outros, ainda regresses. Numa manhã de nevoeiro, quando eu for modelo e tiver um metro e noventa, e em França choverem porcos sobre a tua cabeça.

Monday, April 04, 2011

Irene

Devolvam-me o livro de Irene. Para que possa sugar-lhe as palavras sílaba a sílaba, como se sorve com a boca o suor de um corpo. Para que em mim brote de novo o encanto alucinado de mentes mais elevadas, como se erguem gementes orgasmos masculinos.
Deixem-me voltar à floresta de Irene. E mergulhar nas sombras das árvores que sei de cor, porque as sou. E expirar-me no ar que o plâncton do pântano de Irene abraça. E reencontrar-me em cada folha caída, em cada clareira, em cada caminho por desbravar.
Encontrem-me o rosto fotográfico de Irene. Perdido entre memórias que ninguém mais sabe contar. Abandonado em cofres bordados de flores, vestígios de tempos de cosedura sob a luz do fogo que se apaga devagar.
Apertem-me o espaço de Irene contra o peito, até ficar marcado, como um ferro no dorso de um cavalo, como unhas que devoram a epiderme desejada, como fogos que ardem mesmo sem se ver. Imolem-me no sangue ardente de Irene, no coração da floresta, com os pés dormentes pela gélida putrefeita água do pântano; dentro dos livros desenhados e riscados e folheados, livros secretos escritos dentro da alma, a duas mãos, no silêncio de dois batimentos cardíacos perfazendo um só.
Tragam-me de volta Irene, para um espaço onde a velhice não me amorteça a voz desdentada, onde a doença não me encolha a carne até ao vácuo, onde um sonho seja ainda possível realidade, e não a certeza do inalcançável.
Permitam-me que ame novamente Irene, todo o meu corpo sobre si deitado, toda a minha alma em si envolta, tudo o que sou e o que não sou, um sonho, uma realidade, uma vida construída repetidamente, renascendo a cada instante ao som da melodia do eterno brilho que me fica no olhar.
Deixem-me ser de novo Irene, tão branca, tão leve, tão sorridente, tão sublime, tão minha.
Deixem-me entrar em casa sem cambalear e encontrar uma Irene que não seja pedra de lápide fria, antes lábios de amor para me beijar. Antes braços que me envolvam sem nunca me largar. Até morrer. Três segundos depois. Feliz.

Friday, February 11, 2011

overdose

Tenho demasiado silêncio dentro de mim. E nenhum silêncio é sossegado. Há uma dor que me cresce entre a pupila e o osso occipital. Há um aperto a sufocar-me, tenazes que me espremem os pulmões, contorcendo-os com as mãos decrépitas de amores moribundos.
Tenho demasiado tempo dentro de mim. E nenhum tempo apaga a dor já instalada e implantada, cravada e soterrada, adormecida como um vulcão, bem dentro do coração.
Tenho demasiado amor dentro de mim. Amor que renasce em cada vida que me cruza, amor que brota em geração espontânea, rasgando-se ao desbarato por tudo o que é bom e por tudo o que é vil.
Tenho tanta raiva e mágoa e solidão e amor e saudade a transbordar dentro de mim…que parece que não consigo parar, quando parece que também não sei mais andar. Sento-me por fim no mesmo banco de jardim. Sento-me num turbilhão de memórias, debaixo do mesmo céu estrelado de outrora, imersa numa mesma floresta tropical imaginária, um mesmo céu arroxeado de madrugada, um mesmo corte de energia inusitado e a cidade de repente só nossa. O tempo parou naquele dia, sabes? E sei que só ali nos fomos realmente, nem antes nem depois, apesar de tudo o que vivemos. Só ali soubemos ler dentro de nós palavras que se tocaram e criaram um nós que esvoaçou na bruma disfarçada da luz eléctrica que retorna.
Tenho demasiadas vozes dentro de mim, e um esquecimento que me pesa sobre os ombros. Tenho o tempo que me resta e que me foi, e uma vida que não sei como gerir. Tenho dentro de mim um mundo de emoções que o mundo não quer ouvir. Tenho-te a ti tão longe… Tão longe que não sei sequer se ainda me ouves… Tão longe que mesmo estando perto não me sabes mais ouvir.
Feliz dia dos namorados. Hoje tenho tempo que chegue para o dizer sem o sentir.

Thursday, December 09, 2010

Trovoada

Parece que amanhã chove. A D.ª Gertrudes declara-o como visionária, com ares de quem descobriu a solução para todos os problemas do mundo. Inclina-se sobre o balcão e fita o céu, chove de certeza, estas nuvens só enganam os grã-finos da cidade. Amanhã chove, e eu, grã fina da cidade que sou, não vejo mais do que o sol radiante que espreita por entre nuvens cinza claro. Tenho vista curta, não sou como a D.ª Gertrudes. Embora saiba que o cinza claro é na verdade um imenso arco-íris cromático, é só o cinzento que vejo, e não sei ler nas linhas do céu a pluviosidade futura.

Alguém se esqueceu de um pequeno caderno preto na mesa à minha frente. No pequeno café da D.ª Gertrudes há sempre alguém que esquece alguma coisa: um caderno, uma carteira, um queque que ficou a meio pela chamada telefónica inesperada, um cigarro por apagar. "Toda a gente corre nesta cidade!", diz a Dª Gertrudes com a mesma incompreensão resignada e desaprovação da avó que vê os netos crescer para uma vida tão diferente da sua.

Pergunto-me o que diria a D.ª Gertrudes se soubesse o que vai dentro de mim. Tenho a certeza de que me daria um conselho sensato, que me diria que sou ainda uma criança com medo do escuro, uma grã-fina da cidade que não entende nada da vida. E teria razão.

Alguém voltou a mencionar o teu nome. Alguém me disse que te viu, atarefado, com ar cansado, com vontade de mudar de vida. Alguém fez por evitar dizer-me o evidente: em nenhuma dessas vidas me incluo. Alguém esboçou um sorriso triste de compaixão. Alguém, não tu, disse-me que nada muda. Alguém...e podias ter sido tu. Ou podia ter sido o corpo que agora se move por cima de mim.

Há um corpo que o meu corpo chama, uma alma que quero acarinhar, e não consigo, somente finjo que sinto o que é já vazio. Há uma promessa de vida, um alento para a minha solidão, e não parece ser suficiente. Há um corpo que arfa sobre mim, e assim, em gritos de um prazer inusitado, tira de mim a adrenalina da jornada extenuante a que me entrego sem descansar. Prazer efémero, prazer movido por um carinho tímido e umas doses de hormonas. Há um corpo que é somente um corpo, no qual reside uma alma que tento compensar pela minha falta de vontade de ficar. Há um corpo que me enxuga lágrimas, me leva a passear à beira-mar, não se importa de atravessar a chuva para me beijar, ensopado e atirado à enxurrada de um sentimento que insiste em não crescer dentro de mim. Há um corpo a que terei de dizer adeus um destes dias. Há um corpo que não consegue fazer-me esquecer o teu. "Hoje ainda te vou fazer dizer que me amas", grita entre gemidos, "hoje não te vais embora", diz, e eu nada digo, "estás a apaixonar-te por mim", e eu desisto de ser tão sincera, e eu desisto de lhe explicar, amanhã vou embora de vez para nunca mais o magoar. E nunca vou. Acho que não consigo suportar a ideia de chegar a casa cansada depois de um dia de imenso trabalho e não ter com quem partilhar as minhas vitórias e as minhas frustrações.

Do café da D.ª Gertrudes parece que tudo se vê mais claramente e simultaneamente tudo fica distante, como o filme que passa frente aos nossos olhos sem que o toquemos, sem que o sejamos, quase esquecendo... Hoje alguém esqueceu um caderno e partiu tão cedo que nem soube que amanhã vai chover. Quando voltar para reaver o caderno, voltará encharcado, e a Dª Gertrudes sabiamente dir-lhe-á: "se me tivesse ouvido não estaria assim! Leve lá o seu caderno, e um chapéu-de-chuva, e não se esqueça que amanhã há trovoada! O céu nunca mente, as pessoas da cidade é que não sabem lê-lo".

Acorda-me amanhã, se ainda me chamar Sofia, se ainda te lembrares do meu nome que eu já quase esqueci, e diz-me se continua a chover. Deixei a minha vida sentada à tua espera no café da D.ª Gertrudes, e hoje, em corpos que me têm e almas que se evaporam, até o meu nome perdi. Se não me encontrares na cama pergunta lá por mim. Dizem que aí me viram ontem pela última vez, sentada numa cadeira, abandonada, no mesmo sítio onde me perderas, à espera que, apesar da chuva, ainda queiras abraçar-me novamente.

Tuesday, November 23, 2010

No fim dos sonhos

O jantar esfriou. Espreito pela janela e nem um sinal teu. Comprei as tuas flores favoritas para o centro de mesa, fiz bifes com molho de ostras que me tiraram cinco horas de dedicação e algumas mais de paciência para repetir a operação a cada falha. Hoje vesti uma lingerie mais arrojada do que eu gosto, só para que não te queixes que sou demasiado simples. Hoje maquilhei-me e pus um sorriso no rosto para apimentar o ambiente. A chama da paixão vai e volta ciclicamente. Tal como tu.
Hoje decidi fingir que não vejo como te esgueiras por entre as portas, como deixas bilhetinhos nos bolsos dos vestidos das criadas, como ignoras o que sinto, o que penso, o que quero, como nem sequer te importa o que quer que se passe comigo. Hoje decidi fingir que existe algo que nos liga, algo além de dois corpos que se devoram noite dentro, algo mais do que duas vidas que se cruzam ao fim do dia para não ficarem sozinhas, algo mais do que um resto de juventude com medo de envelhecer. Hoje decidi acreditar em tudo o que sei que não existe: companheirismo, interesse, paixão, amor. Hoje decidi fingir que sou feliz para te satisfazer. Decidi fingir que não preciso de mais do que estas palavras que por vezes trocamos no cansaço dos corpos suados. Hoje decidi deixar-te pensar que não sei que me queres só para passar o tempo, para não estar sozinho, para depositar esperma em paredes mais húmidas, para rir de vez em quando, conversar de vez em quando, abraçar de vez em quando, sempre que o que em ti é humano pede carinho e compaixão. Hoje decidi fingir que não me sinto vazia e que "tudo o que te dou me dás a mim" e outras frases bonitas que alguém inventou antes de mim (para não ter de rebuscar réstias de emoções que não existem e assim desenhar palavras que acalentem na escuridão).
Hoje, como todos os dias, fito a esquina onde a sinalização luminosa da tasca do Sr. João pisca em luzes quase fundidas. Ora vermelho, ora laranja, ora rescaldo da incidência da luz e subitamente a noite em breu. Lamento a falta do vermelho constante, mas intimamente espero que todas as luzes se apaguem, que todos se vão embora, que fique sozinha, só eu e a noite, nesse único momento em que me posso ser, sem ligas, sem rimel, sem tagliatelli esfriando e colando ao tacho, sem toalhas bordadas e sapatos de salto. Esse espaço onde ninguém existe além de mim e o meu silêncio. Esse local em que todos me conhecem por dentro, porque ninguém ali habita além de mim.
Rodo a cabeça de encontro ao relógio de sala que marca 22 horas. Um movimento semi-circular traz-me de novo à rua. Suspiro. Será que ainda voltas? Talvez hoje não voltes. Pode ser que hoje não voltes. Por favor, não voltes.

Thursday, September 30, 2010

Onirismo envelhecido

Gosto de olhar o tempo, dizia. Agosto ainda ia a meio e já esperava a chuva. Amanhã chuvisca, dizia, e nem uma nuvem no céu. O certo é que de tanto crer realmente assim acontecia. Era velho, a pele encarquelhada,o olhar fixava pontos que mais ninguém via, a boca entreaberta no alegre espanto inocente da infância. O seu corpo era clausura para uma alma jovem, quase infantil, quase imatura, passando anos em rugas mas nunca em envelhecimento. Porque é só na alma que se envelhece, não no corpo. O corpo é mero vesilhame contendo riachos de corrente brava.
Anos atrás disse-me ter medo de envelhecer. Um temor no seu olhar, como criança que se esconde do escuro a toda a volta. Um terror de ver a vida afunilar em linhas esguias de íngremes subidas. Nesse dia apeteceu-me abraçá-lo, dizer-lhe que a sua alma nunca morre, como nunca morrerá dentro de mim.
Anos atrás, como ontem, um olhar embevecido fitando o céu e tudo o que ele lhe lembra como quem contempla a sétima maravilha do mundo, o santo graal, o elixir da longa vida. Anos atrás, em aventuras desmedidas, saltitando em gargalhadas mais ou menos auto-centradas, sempre vivas, nunca descrentes, nunca adultas.
Hoje, perdido dentro de si, sem consciência do mundo, vivendo o tempo que acredita mudar com as suas mãos. E muda mesmo. Dentro de mim o tempo muda, faz-me sorrir, de cada vez que na sua mente o sol torna a brilhar.

Monday, September 13, 2010

Carta ao eu que fui ou ode à solidão

Foi necessário volver trinta anos para que te percebesse. Foram necessários trinta anos para voltar àquela tarde de Verão em que escolhi não te mudar. Foi necessário perder toda uma vida para ganhar coragem para te mandar embora. Hoje, talvez já tarde demais.
Naquela altura tinhas descoberto o amor, era tudo tão maravilhosamente intenso que te assustava. Os dias passavam suaves, sopros de alegria bafejavam-te, e um mundo que não o teu desabrochava perante ti na vontade de te conhecer. Tudo parecia correr bem nessa partilha inesgotável, e o teu mundo permanecia igual mas com um brilho maior. Subitamente, o teu corpo começou a rejeitar o que a ti se dava em carinho como se de um vírus se tratasse, como se um órgão novo tivesse sido transplantado para o teu organismo avesso a mudanças. Parecia-te demasiado, ainda que gostasses. Invadiam-te os pensamentos mais bizarros, uma exigência quase perfeccionista, era bom demais o que recebias e parte de ti não queria dar de volta. Pensaste que era um vício, um demónio dentro de ti que te impelia a afastar tudo o que fosse bom e novo. Pensaste que não sabias lutar e que a fuga a todos beneficiaria. Pensaste que apesar de tudo serias mais feliz sozinho.
Naquela altura, meu caro eu passado, tu eras imaturo. Naquela altura tu tinhas medo de viver. Naquela altura tu eras fraco.
Hoje escrevo-te do fundo da minha enorme sala de estar. Quartos e quartos repetem-se vazios pelo corredor. As paredes estão forradas de estantes atoladas em livros, a música preenche o vazio a toda a volta. Hoje escrevo-te no lusco fusco deste dia que se cansa de viver, após a excruciante adrenalina laboral quotidiana, no centro da cefaleia que nem com uma boa noite de sono passará. Hoje escrevo-te do futuro para te dizer que foste burro. Escolheste o fácil caminho da solidão e egoisticamente tentaste acreditar que seria a decisão mais benévola para todos, como se omnisciente e altruísta fosses. Fingiste para ti mesmo que querias resolver os teus problemas internos, que o problema estava em ti, que precisavas de tempo. Mas de que servem as respostas que com palavras se dão quando a realidade da nossa vida não as reflecte?
Tempo é o que hoje tens em demasia e te devora anos de vida. Construíste um futuro brilhante, concentraste em ti vastíssimo conhecimento bibliográfico, olhaste-te de todos os ângulos, mas de que te serve tanta matéria em bruto se não tens com quem a partilhar e assim aprofundar? Na verdade, tudo se aguenta, até mesmo a solidão, enquanto a nossa vida parece ter algum sentido. Assim, viveste todos estes anos em paz, com pena da pessoa perdida, mas confiante de que tomaras a decisão certa para ti e de que nunca te arrependerias. Assim te construíste um orgulhoso solitário, por vezes até um eremita. E no entanto eis que hoje te cruzas contigo mesmo e te encontras descrente e atormentado, sentado no fundo da tua sala vazia onde ecoam os risos estridentes e os olhares enamorados de outrora... Esse local onde a face dela é o cenário dos teus sonhos escondidos.